Os poemas de Cecília Meireles são especiais. Para mim, a escritora se posiciona certeiramente entre o otimismo e o pessimismo, ao abraçar com seu forte caráter lírico as diversas questões impostas durante sua trajetória.
A leitura de sua obra me coloca diante das mais variadas reflexões, todas as quais já atravessaram meu íntimo em algum momento. Convido você a também experimentar e se deliciar com as palavras de Cecília, que são como as ondas do mar das quais ela tanto fala: ora pungentes, ora serenas — mas sempre acertadas.
Motivo
Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre nem sou triste: sou poeta. Irmão das coisas fugidias, não sinto gozo nem tormento. Atravesso noites e dias no vento. Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço, -- não sei, não sei. Não sei se fico ou passo. Sei que canto. E a canção é tudo. Tem sangue eterno a asa ritmada. E um dia sei que estarei mudo: -- mais nada.
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje, assim calmo, assim triste, assim magro, nem estes olhos tão vazios, nem o lábio amargo. Eu não tinha estas mãos sem força, tão paradas e frias e mortas; eu não tinha este coração que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, tão simples, tão certa, tão fácil: -- Em que espelho ficou perdida a minha face?
Canção
Pus meu sonho num navio e o navio em cima do mar; -- depois, abri o mar com as mãos, para o meu sonho naufragar. Minhas mãos ainda estão molhadas do azul das ondas entreabertas, e a cor que escorre dos meus dedos colore as areias desertas. O vento vem vindo de longe, a noite se curva de frio; debaixo da água vai morrendo meu sonho, dentro de um navio... Chorarei quanto for preciso, para fazer com que o mar cresça, e o meu navio chegue ao fundo e o meu sonho desapareça. Depois, tudo estará perfeito: praia lisa, águas ordenadas, meus olhos secos como pedras e as minhas duas mãos quebradas.
Canção excêntrica
Ando à procura de espaço para o desenho da vida. Em números me embaraço e perco sempre a medida. Se penso encontrar saída, em vez de abrir um compasso, Protejo-me num abraço e gero uma despedida. Se volto sobre o meu passo, é já distância perdida. Meu coração, coisa de aço, começa a achar um cansaço esta procura de espaço para o desenho da vida. Já por exausta e descrida não me animo a um breve traço: -- saudosa do que não faço, -- do que faço, arrependida.
Despedida
Por mim, e por vós, e por mais aquilo que está onde as outras coisas nunca estão, deixo o mar bravo e o céu tranquilo: quero solidão. Meu caminho é sem marcos nem paisagens. E como o conheces? -- me perguntarão. -- Por não ter palavras, por não ter imagens. Nenhum inimigo e nenhum irmão. Que procuras? -- Tudo. Que desejas? -- Nada. Viajo sozinha com o meu coração. Não ando perdida, mas desencontrada. Levo o meu rumo na minha mão. A memória voou da minha fronte. Voou meu amor, minha imaginação... Talvez eu morra antes do horizonte. Memória, amor e o resto onde estarão? Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra. (Beijo-te, corpo meu, todo desilusão! Estandarte triste de uma estranha guerra...) Quero solidão.
Sobre Cecília Meireles
Cecília Meireles foi uma das primeiras mulheres a se destacar no universo da produção literária brasileira. A poetisa carioca veio ao mundo em 7 de novembro de 1901, no Rio de Janeiro. Órfã de pai e mãe, foi criada pela avó materna.
Concluiu o curso primário na escola Estácio de Sá e diplomou-se professora pela Escola Normal do Instituto de Educação, ambas instituições localizadas no Rio de Janeiro. Colaborou em diversos periódicos das cidades do Rio e de São Paulo, lecionou em universidades brasileiras e estrangeiras. Organizou a primeira biblioteca infantil do Brasil, no Pavilhão Mourisco, no bairro carioca de Botafogo.
A escritora morreu em decorrência de um câncer em 9 de novembro de 1964, aos 63 anos. Recebeu, post mortem, o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto de sua obra.
Referências
MEIRELES, Cecília. Os melhores poemas de Cecília Meireles / seleção Maria Fernanda. São Paulo: Global, 2002. 14ª edição.